Por Fernando Oliveira, sociólogo e ativista político
Em um mês marcado por tragédias e episódios que evidenciam o abandono social, notícias como a morte de um homem que se incendiou, o frio que vitimou moradores de rua na Grande São Paulo e a perda de uma cachorra companheira de um morador de rua chamaram atenção para uma questão alarmante: até quando vamos aceitar essas histórias como normais?
Em tempos de violência extrema, conflitos armados, disputas ideológicas e consumo desenfreado, a sociedade parece estar perdendo sua humanidade. Cada dia mais, agimos como animais instintivos na luta pela sobrevivência, utilizando qualquer instrumento disponível para nos defender. Essa postura tem contribuído para o aumento do número de grupos e indivíduos ignorados, negligenciados ou excluídos pelo sistema.
Dados do Cadastro Único para Programas Sociais (CadÚnico), divulgados em março de 2025, apontam que mais de 335 mil pessoas vivem em situação de rua no Brasil. Em São Paulo, estima-se que esse número ultrapasse 136 mil, com a capital liderando o ranking nacional de quase 90 mil pessoas. Além disso, aproximadamente 800 mil catadores de materiais recicláveis atuam em condições precárias e sem o reconhecimento social devido.
Esses números revelam uma crise humanitária silenciosa que exige reflexão e ações concretas. Até quando continuaremos a normalizar essas tragédias?
São pessoas, cidadãos que carregam histórias de vida, sonhos e expectativas. No entanto, muitas tiveram suas trajetórias dizimadas pela fome, miséria, desemprego, o impacto das drogas e a marginalização — fatores que alimentam diariamente a violência. Apesar de avanços na redução da pobreza graças à estabilidade econômica e a programas sociais, os índices de criminalidade e homicídios permanecem estáveis.
A ausência de uma rede de proteção eficaz faz com que muitos recorram ao lixo em busca de alimento, enfrentem o abandono familiar, a violência doméstica, o racismo, a discriminação de gênero e a vulnerabilidade às drogas. Essa combinação perpetua um ciclo de pobreza e exclusão que parece sem fim.
No entanto, um elemento fundamental para transformar essa realidade é a educação. Ela é uma ferramenta poderosa de oportunidade, capaz de abrir portas para quem vem de contextos mais vulneráveis. Investir em educação significa oferecer conhecimentos, habilidades e valores que podem mudar vidas — possibilitando acesso a melhores empregos, autonomia financeira e uma participação mais ativa na sociedade.
O Relatório de Desenvolvimento Humano de 2021, divulgado pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), reforça que desigualdade social e exclusão representam obstáculos ao progresso sustentável. A pandemia de COVID-19 agravou ainda mais essas disparidades, expondo as fragilidades dos sistemas de saúde, educação e assistência social no Brasil.
O último Censo, divulgado em 2024, trouxe boas notícias: houve uma redução significativa no índice de analfabetismo e um aumento nas matrículas do ensino médio. No entanto, também apontou uma queda na Educação de Jovens e Adultos (EJA). Para a maioria das pessoas, obter uma certificação escolar ainda é visto como uma consequência de uma trajetória acadêmica formal e tradicional, mas segundo o IBGE, cerca de 8,7 milhões de jovens entre 14 e 29 anos ainda não concluíram o ensino médio em 2024.
As razões para essa realidade são diversas. Entre os homens, a necessidade de trabalhar frequentemente é apontada como principal obstáculo à continuidade dos estudos. Já entre as mulheres, fatores como gravidez precoce, tarefas domésticas e o cuidado com familiares predominam. Além disso, há uma preocupação crescente com a falta de interesse de crianças e jovens em estudar e conquistar um diploma, muitos deles acreditando que os estudos não garantem um futuro promissor.
Essa percepção é alimentada por salários baixos, condições precárias de trabalho e a exigência de altos padrões de desempenho por parte das empresas — muitas vezes inalcançáveis para jovens das periferias. Uma pesquisa recente revelou que mais da metade da geração Z acredita que cursar faculdade é uma perda de dinheiro e tempo. Para muitos jovens, o diploma perdeu seu peso tradicional no mercado de trabalho, especialmente diante do crescimento de áreas como tecnologia, marketing digital e empreendedorismo, onde experiência prática e networking têm maior valor.
Na periferia, alternativas como se tornar um MC famoso ou um influenciador digital têm se tornado opções mais acessíveis e rápidas para alcançar reconhecimento social e sucesso financeiro.
Embora experiências empíricas sejam importantes e devam ser valorizadas, o certificado de conclusão do ensino médio ou o diploma de ensino superior continuam sendo essenciais. Esses documentos não apenas abrem portas para diversas oportunidades de emprego e concursos públicos, mas também são pré-requisitos para programas sociais e benefícios oferecidos pelo governo. Além disso, a formação acadêmica contribui para o desenvolvimento de habilidades e do pensamento crítico, fundamentais para o progresso de toda a sociedade.
Reconhecendo essa importância, o governo federal lançou recentemente o Programa Pé de Meia, que oferece bolsas para estudantes do ensino médio da rede pública, incentivando-os a permanecer na escola até a conclusão dos estudos. Afinal, sem educação, as perspectivas de muitos jovens se tornam limitadas diante das dificuldades que a vida impõe — muitas vezes levando milhares à extrema pobreza e vulnerabilidade.
Por isso, fortalecer a educação pública é uma prioridade fundamental para garantir que todos tenham oportunidades iguais de crescimento e desenvolvimento. Para avançar nesse objetivo, é imprescindível que as políticas públicas sejam construídas com base no respeito às diferenças, adotando estratégias que assegurem que as oportunidades cheguem aos menos favorecidos. Somente por meio de ações coletivas, imparciais e voltadas à inclusão é possível transformar a realidade de milhões de brasileiros, tornando a sociedade mais justa, mais humana e mais consciente de que a vida deve estar acima do lucro.
Embora esse caminho seja longo e repleto de desafios, a esperança de uma sociedade mais igualitária permanece viva. É necessário que todos trabalhem juntos para que a invisibilidade social deixe de ser uma norma e passe a ser uma exceção — um objetivo possível quando há compromisso coletivo com o bem comum.
